segunda-feira, dezembro 29, 2008

Eternamente

O texto abaixo é do livro que comecei a ler,Não te Deixarei Morrer,' David Crockett, de Miguel Souza Tavares,escritor nascido no Porto-Portugal.Este livro reúne pequenos textos,contos,crônicas que ao longo dos anos foram publicados na Revista
Máxima, noutros lugares e também alguns inéditos.Vale a leitura,viaja-se com o autor!


E escrevi o teu nome e o teu número de telefone numa página da agenda do mês de
Fevereiro. E, ao escrevê-lo, sabia que era uma despedida, mas todo o mês de Março nos
arrastámos na despedida, como caranguejos na maré vazia. Sem ti, lancei outras raízes,
construí pátios e terraços, fontes cujo som deveria apagar todos os silêncios, plantei um
pomar com cheiro a damasco, mandei fazer um banco de cal à roda de uma árvore para
olhar as estrelas no céu, um caminho no meio do olival por onde o luar pousaria à noite,
abóbadas de tijolo imaginadas pelo mais sábio dos arquitectos e até teias de aranha
suspensas do tecto, como se vigiassem a passagem do tempo. Nada disso tu viste, nada te
contei, nada é teu. Sozinhos, eu e a aranha pendurada na sua teia, contemplámo-nos
longamente, como quem se descobre, como quem se recolhe, como quem se esconde. Foi
assim que vi desfilar os anos, as paredes escurecendo, um pó de tijolo pousando entre as
páginas dos mesmos livros que fui lendo, repetidamente.
Heathcliff e Catarina Linton destroçados outra vez pela minúcia do tempo.
Como explicar-te como tudo isto se te tornou alheio, como tudo te pareceria agora
estranho, como nada do que foi teu vigia o teu hipotético regresso? Ulisses não voltará a
Ítaca e Penélope alguma desfará de noite a teia que te teceste.
E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone. Veio a
seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor da tremocilha e a das buganvílias
adormecidas, vi rebentar o azul dos jacarandás em Junho, vi noites de lua cheia em que
todos os animais nocturnos se chamavam rãs, corujas e grilos, e um espesso calor sobre a
devassidão da cidade. E já nada disto, juro, era teu.
E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio
que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.
Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes.
Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da
água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito
que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara,
para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre
seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio
das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto
eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos
nunca traídos.
E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de
um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro,
com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde
verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos
outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram,
todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia
ser meu para sempre.

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